No livro “Ao Anoitecer”, o escritor norte-americano Michael Cunningham descreve o assombro de um personagem ao observar, em uma exposição do Met, em Nova York, um tubarão suspenso no azul-pálido estranhamente adorável do formol. Estava lá a “perfeição letal de sua forma”. Afinal, pergunta o narrador, quem não se abala com um animal de quatro metros, morto, boiando em um tanque? O protagonista sente apenas enjoo enquanto observa a interação do público com a obra. Dá medo?, pergunta um menino pequeno segurando a mão do pai. O espanto é contornado com um comentário, cortante, de sua esposa: por que alguém pagaria oito milhões de dólares para ficar olhando aquela porcaria se desintegrar? A “porcaria”, entre aspas, era uma das mais famosas obras de arte do fim do século 20: “A impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo”, uma criação do artista inglês Damien Hirst. O curioso é que, antes de conferir a obra de Hirst, Peter, o personagem de Cunningham, se depara com uma escultura que o intriga. Era A idade do bronze, de Rodin. Naquele corredor do museu nova-iorquino, ele concluiu que o artista francês era passado. Teve lá sua importância na história, mas não era reverenciado pelas novas gerações. Ainda assim, aquela obra, feita em bronze, poderia durar para sempre e ser desenterrada no futuro por alienígenas. Serviria como prova de quem fomos um dia. O dilema do protagonista é, de certa forma, um resumo de uma mudança de paradigma que a humanidade testemunhou no tempo em que Rodin, nascido em 1840, criava suas obras visando a eternidade. As transformações sociais daquela época são marcadas pelo surgimento do rádio, do avião, da psicanálise, da teoria quântica, da teoria da relatividade, da penicilina e tantas novidades que colocaram a humanidade em uma rota de mudanças aceleradas ao longo do século 20. Isso moldou a forma como pensamos, agimos, produzimos e compreendemos o mundo. A crença em princípios unificantes e as teorias definitivas de tudo pareciam nos levar a um destino grandioso. O resto da História é conhecido. Aquele mundo que se explodiu em duas grandes guerras deixou como legado um grande ceticismo em relação às verdades. Levou também ao desmantelamento das grandes narrativas. Entramos assim em uma era de rechaço, cinismo, ceticismo e desconfiança – inclusive da ciência. As representações artísticas não passaram imunes a esse processo. Elas se converteram em uma indústria estéril e ligada aos interesses de grandes galeristas e empresários. Um exemplo disso é a citada obra de Damien Hirst. Outro exemplo é o Bored Ape Yacht Club: #8817, uma figurinha digital com certificado de propriedade armazenado em blockchain. A primeira obra, de 1991, foi vendida, vale repetir, por oito milhões de dólares. A outra, de 2021, por 3,4 milhões. Elas representam como poucas obras o espírito do rechaço e da desconstrução que marca a pós-modernidade. Mas será que ainda representam o mundo atual? Pelo planeta afora, há sinais evidentes de que estamos adentrando em um novo momento histórico: a Era da Metamodernidade, um espírito do tempo que tem como marca o “idealismo pragmático”. Um desses sinais é que a produção artística já não celebra apenas o ceticismo. Em vez disso, tem buscado mensagens sinceras e criativas. Da mesma forma, a produção intelectual está mais orientada a pensar o futuro. O futuro é um desafio para todos e requer saídas coletivas para iminentes catástrofes, como as que se avizinham com a crise climática. Essa mudança acompanha um cansaço das teorias obscuras, dos discursos de ódio e também da ironia como forma primária de estimulação intelectual. Nesse novo cenário talvez o cinema de Lars Von Trier já não seja tão celebrado. O mundo que emerge exige novos Dogmas. E certamente um dia será criticado como fazemos agora. #ÁlvaroMachadoDias #ImpossibilidadeFísicaDaMorte #DamienHirst #EspíritoDoTempo #BodesApêYachtClube8817 #Folha #LiteraturaContemporânea #CinemaContemporâneo